terça-feira, 29 de março de 2011

Comunidades denunciam falta de transparência nas obras da Copa em Porto Alegre

Tania Jamardo Faillace - Jornalista do GT Comunicação

Fotos: Katia Marko
Nos contos orientais das Mil e Uma Noites, sempre aparece o relato de uma audiência pública com um Cadi, o juiz islâmico, que, nos velhos tempos, recebia os queixosos de sua província, fossem ricos ou pobres, para fazerem suas reivindicações em toda a liberdade.

Esse modelo também existiu no velho reino de Israel, quando o rei Salomão deitava sabedoria e tratava com justiça quem recorria a ele, independente de sua classe social ou amizades influentes.

Um espetáculo parecido aconteceu na Audiência Pública realizada no dia 25 de março, no auditório Dante Barone, da Assembleia Legislativa, em Porto Alegre.

O julgamento, porém, permanece em suspenso, até melhor estudo das queixas e evidências.

O evento, que, na verdade, faz parte de um inquérito civil dotado de numeração processual (1.29.000.000396/2011-82) foi uma iniciativa da Procuradoria Geral da República, através do Ministério Público Federal para “acompanhar os impactos do Megaevento Copa do Mundo de 2014”, dentro da jurisdição do município de Porto Alegre, assim como está sendo feito nos demais municípios que sediarão a Copa do Mundo.

Não se trata de uma medida rotineira, pelo contrário. Na área pública, até recentemente, a tendência era levar a questão dentro de um caráter festivo, como um extraordinário e lucrativo investimento no prestígio internacional do País, e, talvez, ganhar mais alguns pontos a fim de sentar no Conselho de Segurança da ONU.

Promotores coordenam audiência

Na mesa instalada no palco, apenas os três promotores: Alexandre Gavronski do Ministério Público Federal, o anfitrião; Luciano Brasil e Francesco Conti, do Ministério Público Estadual.

O Auditório estava razoavelmente concorrido, embora sem a lotação total verificada na audiência pública de janeiro de 2010, quando foi discutida e contestada a entrega do morro Santa Teresa a uma empresa de construção civil por iniciativa da ex-governadora, sob a forma de uma permuta com valor vil, que desalojaria 1.500 famílias e destruiria um santuário ambiental.

O clima emocional também não evidenciou a hostilidade e o tom de guerra e desafio manifestos naquela ocasião: as pessoas presentes estavam dispostas a darem seu voto de confiança aos três Cadis modernos ali presentes: os três promotores.

O destaque ficou por conta dos veteranos militantes de entidades e movimentos comunitários e ambientalistas, tanto moradores de áreas irregulares como moradores dos bairros consolidados. Reparo a fazer: a predominância absoluta de oradores do sexo masculino, com apenas umas três ou quatro exceções femininas. Não vigorou nessa audiência, o sistema de quotas partidárias ou universitárias, detalhe tanto mais notável por ser março o mês da mulher.

Obedecendo a uma ordem de inscrição, os primeiros a se manifestarem foram os representantes das comunidades e entidades ligadas à moradia popular, aos movimentos sociais e aos direitos humanos, ficando para o final o pronunciamento de representantes da prefeitura: Secretaria Especial da Copa (a Secopa) e Secretaria de Governança. Entre os dois momentos, o promotor Alexandre Gavronski, movido por sua própria intuição, ou advertido por alguém, pediu a isenção do público e seu respeito aos oradores institucionais. Foi atendido, com apenas um ou outro momento tenso quando da exposição do Secretário Especial da Copa que mereceu alguns ensaios de vaia.
 
Moradores estão inseguros

A tônica dos pronunciamentos por conta das entidades populares e de direitos humanos, como a Ong Acesso e a Plataforma 10 (relatoria do Direito Humano à Cidade) pôs em evidência a situação de “gato escaldado” da população e das entidades sociais de Porto Alegre. Isto é, os cidadãos de nossa cidade cada vez se sentem menos dispostos a engolir promessas sem garantias, e a acreditar que altas obras e eventos possam vir em seu benefício.

Aliás, essa atitude não é exclusiva de Porto Alegre. O blog da arquiteta Raquel Rolnik, de São Paulo, que vem divulgando informações sobre as conseqüências desastrosas dos megaeventos esportivos nos países emergentes em relação às populações carentes, e outras entidades preocupadas com os direitos humanos e a cidade democrática, se desempenharam com tanta eficiência e poder de convencimento, que as irregularidades de nosso PAC começaram a ser detectadas e denunciadas, com quase três anos de antecedência. 

A maior de todas as preocupações dos cidadãos da área urbana são as remoções anunciadas para possibilitar a realização de obras físicas, principalmente as de caráter público e viário. Em Porto Alegre, a de maior impacto social é, sem dúvida, o alargamento da Vila Tronco, que deve desalojar cerca de 1.800 famílias. Essa obra é considerada prioritária para a realização da Copa, a fim de assegurar o fluxo viário em relação ao estádio do Sport Club Internacional, que sediará os jogos em Porto Alegre.

Mas não é a única. E além desses desalojamentos em área pública, têm sido anunciado outros em áreas privadas (doadas pelo Estado), a fim de ser aproveitada a isenção fiscal oferecida pelo Estado e o Município às obras construtivas que se relacionarem com a Copa.

Assim, muitos projetos aproveitaram o embalo e a carona para pôr em execução seus planos.

Devido ao limite de espaço, é impossível colocar aqui os pronunciamentos de todos os oradores, mas podem ser conferidos nos vídeos disponibilizados. Entre outros, podem ser citados representantes do bairro Cristal (Leandro, Andressa, Renato, Noeli); Ronaldo (da Grande Cruzeiro); Fernando (Apedema); Juramar (do Arquipélago), Jacques Alfonsín (Ong Acesso, e membro do Conselhão do governo Tarso); Eduardo Solari (Movimento Utopia e Luta, que fez a primeira ocupação bem sucedida de prédio urbano público); Darcy (do movimento em defesa do morro Santa Teresa e pela regularização fundiária); o jornalista Luix, Heverson (representante da Restinga, que abordou a problemática da Região, tratada como um quarto de despejo da cidade, e as questões gravíssimas do atendimento à saúde); Eduíno (do Região 7, grande Partenon, que citou as ações populares em andamento contra os projetos anunciados que atentam contra a ordem urbana e a preservação ambiental), Josué (da Central de Movimentos Populares), Itamar (do Movimento de Luta pela Moradia), Felipe Viana (ambientalista da Ecoconsciência).

Numa segunda rodada, pronunciaram-se a vereadora e presidente da Câmara, Sofia Cavedon informando a criação do Comitê Especial da Copa como órgão fiscalizador da Câmara com relação ao PAC; o vereador Comassetto, que criticou o descaso da Municipalidade em viabilizar o Conselho da Cidade, uma prioridade do Estatuto das Cidades; Nurimar (do bairro Humaitá), Henrique Wittler (do bairro Jardim Botânico, que abordou discrepâncias pecuniárias em relação aos projetos e transações fundiárias, inclusive a propalada “revitalização” do cais Mauá); Leia Aguiar (do Bairro Lajeado, denunciando o abandono da periferia); Ezequiel (do MBPM, que se manifestou contra o cheque-despejo), Jakobazko (bairro Centro, propondo o aproveitamento dos prédios desocupados para moradia popular); um representante do Quilombo Fidelis; Tania Faillace (delegada da Região de Planejamento 1, que abordou os conchavos políticos e as ilicitudes cometidas pela área pública e privada com relação a certos projetos de impacto do PAC da Copa); Cristiano Muller (da Plataforma Dhesca, relatoria de Direitos Humanos da ONU), que fez um histórico da formação da resistência popular que levou à investigação do PAC. 

Denúncias vão além da questão da moradia

Os temas e denúncias foram além da questão moradia, incluindo a condenação das decisões autoritárias, a portas fechadas, a falta de transparência, a destruição da zona rural do município, a especulação imobiliária desenfreada e o privilégio dos empreendedores em relação aos direitos humanos à cidade, e também as ilicitudes, algumas francamente criminosas, como grilagens efetuadas pelo poder econômico, impunidade, esbulho do patrimônio público, etc.

O promotor federal Alexandre Gavronski informou que suas atribuições nesse inquérito se referem ao uso dos recursos federais pelos projetos, ficando o Ministério Público Estadual encarregado de investigar outros aspectos.

Havia, por parte dos representantes da prefeitura, como ficou evidente, um certo receio quanto à acolhida que teriam do público, ao explanar seus projetos e intenções.

Posição da prefeitura

Primeiro falou Cesar Busatto, velho conhecido da cidade, desde o governo estadual de Antônio Britto, e alguns episódios durante o governo municipal Fogaça, e na Casa Civil, governo de Yeda Crusius. Busatto teve um discurso de conciliação, que não parece ter convencido a todos. O público, porém, atendeu, de modo geral, ao pedido do promotor federal, de permitir a fala dos representantes da prefeitura, embora a opinião geral fosse de que não passava de conversa fiada. O pronunciamento de Newton Baggio, da Secopa, já transcorreu com menos tranquilidade. Para isso, contribuiram problemas técnicos na exposição em telão dos projetos públicos para a Copa (15 relativos a obras viárias), e o próprio nervosismo do expositor, que os ativistas comunitários já conhecem de outras reuniões.

Mas... o que realmente não agradou, foi a restrição ao conhecimento direto dos projetos. Isto é, como o expositor reiterasse os dados dos projetos acessíveis por determinado site, mas não revelasse seu endereço, esta redatora insistiu, desde a platéia, que ele o revelasse para todo o mundo poder acessá-lo e inteirar-se de suas diretrizes e características. E aí veio a revelação que indignou a platéia: seria preciso o uso de uma senha para acessar o site, e esta só seria fornecida a algumas lideranças.

Esta, certamente, é uma atitude indefensável por parte da Prefeitura, principalmente depois do discurso do secretário de Governança sobre participação e democracia.

Porto Alegre conta com um sistema de planejamento que, embora deficiente e com várias distorções, é uma tentativa de efetivar o controle social em planejamento. Suas instâncias são o Conselho Municipal do Plano Diretor, e os Fóruns Regionais de Planejamento Urbanístico e Ambiental. Como se pode afirmar que uma Gestão Pública é participativa e democrática, se as informações básicas sobre alterações importantes na cidade ficarem restritas? E sequer as instâncias de planejamento terão acesso aos projetos?

Esse é um assunto no qual devemos insistir e um direito de que não podemos abrir mão: precisamos saber tudo sobre tudo o que ocorre quanto ao gerenciamento da cidade, inclusive para definir se as alterações a serem propostas não representam danos a direitos, ou inconvenientes que possam ser negociados ou dar lugar a contrapartidas e compensações.

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